terça-feira, 1 de junho de 2010

O PONTO CEGO

terça-feira, 1 de junho de 2010
ROTA DO INFINITO


Por acaso, uma obra de arte


POR FLÁVIO LEITE


Sinalizei para ter acesso à faixa da direita. Já estava a entrar quando, de repente, um carro se materializou no retrovisor. Confesso: caí na famosa pegadinha do ponto cego. Puxei o volante e voltei para a minha mão. O sujeito buzinou, gesticulou, olhou de cara feia, xingou, descarregou a raiva do chefe, da sogra, do cunhado e do chefe novamente. Em outra manhã, levantei-me da cadeira de réu e sentei-me na de juiz. De peito estufado, fui o dono da razão pelo menos por uma manhã. O carro da frente foi entrando como se eu estivesse invisível. Buzinei, xinguei, mostrei o dedo do meio. Sabe porque fiz isso? Eu também não sei. Mas, me pareceu muito natural. A humanidade parece mesmo caminhar nesta rota da intolerância, da intransigência, da irracionalidade. E ficam algumas interrogações: não se pode mais errar? Será o fim do acaso? Acredito que, em breve, não haverá mais "serendipicidades". Será o fim das descobertas afortunadas . Ora, é sabido que o acaso necessita da falta de motivos, da ausência de explicações e até mesmo dos erros. Quantos casamentos nasceram após uma batida de carros? Quantos mendigos famintos encontraram notas suicidas que se jogaram de algum bolso desapercebido? Pois é... O erro deverá entrar em extinção nas próximas gerações. Robôs não erram. Pelo menos são feitos para não errar. E o mundo ficará sem graça. Tudo por causa dessa mania de perfeição que, dia após dia, acaba com o que ainda nos resta de romantismo e sensibilidade. Enfim, O mundo será literalmente dos espertos. E, sobre a terra, seremos um bando de máquinas sem vergonhas, urrando, batendo no peito, arrastando as fêmeas pelos cabelos e carregando tacapes eletrônicos. Não cairemos mais na pegadinha do carro que surge por acaso no espelho. Pois algum aparelho nos alertará. Contudo, seremos nós os próprios pontos cegos.

1 comentários:

fac e linda costa disse...

Primeiramente, preciso dizer com orgulho: esse é meu primo.
Depois, me engajar na mesma perspectiva crítica do homem de hoje. Estamos criando uma Matrix de perfeição e nos esquecemos que, enquanto formos gente, não dá pra querer ser deuses, nem de nós mesmos, quanto mais do mundo ou para o mundo. Humanos estão ficando raros na terra. Já se perguntava Fernando Pessoa: onde é que há gente no mundo? Sou só eu vil e errôneo nessa terra?
Tenho o privilégio de conhecer alguns ilhados "homo-sentimentalis". Hominídeos raros, mas, vivos sonhando com a utópica vontade de ser apenas gente!

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